Por que Lula primeiro?

Os filoesquerdistas — os famosos “não sou petista, mas…” — têm feito afirmações como “Lula foi preso, logo acabou a corrupção no Brasil”. Esse tipo de raciocínio pervertido faria corar um camarão, que não tem cérebro e tampouco a capacidade de envergonhar-se.

É claro que a prisão de Lula não é o ponto final da corrupção no Brasil. Afirmar tal coisa é o ápice da boçalidade, pois corrupção entre nós é doença congênita. Execram-se os políticos, mas é preciso lembrar que eles não vêm de Marte, e sim do seio, ou da teta, do próprio povo. Os vícios da classe política são os mesmos encontrados na média da população, só que em escala ampliada.

Nossos vezos piores são o filoestatismo e o “gostismo”: os representantes são eleitos não por propostas plausíveis, mas pelo “gosto” pessoal do eleitor ou por soluções “legais” para problemas, as chamadas canetadas. Sabe-se bem que o brasileiro pede leis para tudo, mas não gosta de cumpri-las. Tudo é direito adquirido, exceto se o outro tem a audácia de fazer a mesma coisa; aí é crime.

Lula é o representante máximo desse pensamento. Seu partido fez oposição ferrenha a tudo que se lhe opunha, ou que não lhe era do agrado; aliás, partido que poderia chamar-se simplesmente “Partido do Lula”, pois, longe de ter uma ideologia, resume-se ao culto à personalidade do grande líder com lascas de socialismo. Nos tempos em que foi oposição, o PT fazia grita contra a corrupção no governo, o que lhe atribuiu uma aura santificada. Criou-se a ilusão — em que gente muito boa caiu — de que um governo petista seria o saneamento da vida pública brasileira, assim como houve gente bem-pensante que acreditou no fascismo, como Curzio Malaparte ou Ezra Pound.

O que aconteceu após 2003 foi justamente o contrário ao que o PT apregoava. Em 2005, estourou o escândalo do Mensalão, em que a prática de azeitamento monetário da base no Congresso ficou explícita. Prática que se sabe comum em Brasília, mas que não era esperada de um partido visto como probo e ínclito. O PT sucumbiu ao que de pior existe na política brasileira; ou simplesmente deu continuidade àquilo que fingia combater. Há rastros da corrupção petista bem antes da chegada ao Executivo nacional, como o caso Lubeca, em 1989, em que o partido fez caixa dois para as eleições de 1989 com o superfaturamento de contratos na Prefeitura de São Paulo. A então prefeita Luiza Erundina, que não era a opção de Lula para o comando da capital e ganhou a eleição meio que à revelia do chefe supremo, ficou estremecida com a cúpula do partido e acabou por abandoná-lo em 1997, após outros episódios em que a férrea disciplina partidária da agremiação a sancionou.

Toninho do PT, prefeito de Campinas, e Celso Daniel, prefeito de Santo André, não tiveram a mesma sorte de Erundina: foram mortos em 13 de setembro de 2001 e 18 de janeiro de 2002, respectivamente, porque impediram ou tentaram impedir que suas administrações fossem fonte de recursos de caixa dois para a campanha presidencial de 2001, justamente a que levaria Lula à Presidência da República. Tanto que, passados quase vinte anos dos assassinatos, os casos continuam sendo uma névoa na vida política; lembremo-nos que todas as testemunhas do caso Celso Daniel morreram, de morte morrida ou matada. Destino que também encontrou José Roberto Soares Vieira, ex-vice-prefeito de Ourolândia/BA investigado na Lava Jato e que denunciou a corrupção na Transpetro.

Lula é o PT; o PT é Lula. Isso é tão patente que o ex-presidente simplesmente ignora as vozes vindas do próprio partido. Em 2010, conseguiu fazer sua sucessora Dilma Rousseff, apparatchik oriunda das hostes brizolistas e que não tinha tradição dentro da agremiação, apenas para impor seu prestígio, deixando de lado nomes tradicionais. A mesma cartada deu certo na cidade de São Paulo, em 2012, com Fernando Haddad, homem da nomenklatura petista, mas foi barrada na reeleição, quando perdeu para João Dória Jr. (PSDB). Esse comportamento de Lula talvez tenha dado origem à candidatura de Alexandre Padilha ao governo de São Paulo em 2014; Padilha é outro burocrata, que terminou em um vergonhoso terceiro lugar, atrás de Paulo Skaf (MDB) e do vitorioso Geraldo Alckmin (PSDB).

Lula não é o líder de um partido democrático, mas de uma agremiação totalitária que geralmente repugna prévias e não tem vergonha de negá-las abertamente; os candidatos indicados soem ser indicados pelo capo Lula e simplesmente aclamados. É o prestígio de um líder ególatra que guia todo o partido.

A história de “presidente operário” não passa de um mito. Sabe-se bem que, depois do acidente que lhe decepou o mindinho da mão esquerda — aliás, episódio muito mal explicado —, nunca mais exerceu a profissão que o consagrou, metalúrgico. Ele passou a ser sindicalista full time. José Nêumanne Pinto, em seu livro “O que sei de Lula”, não me deixa mentir.

Após a fundação do PT, em 1980, Lula dedicou-se totalmente à carreira política, disputando o governo de São Paulo, em 1982, quando perdeu para Franco Montoro (MDB), amargando o quarto lugar. Em 1986, foi eleito deputado federal por São Paulo e angariou a maior votação do pleito, com 651.763 votos, o que seria, na época, a segunda maior quantidade de votos individuais para um candidato; o recorde até então era de Paulo Maluf (PDS), que teve 672.927 votos na eleição de 1982, marca que só seria quebrada em 2002, quando Enéas Carneiro (Prona) obteria 1.573.642 votos, título que segue inconteste.

Após essas experiências, Lula decretou que só se candidataria à Presidência, sendo derrotado em 1989, por Fernando Collor de Mello (PRN), e em 1994 e 1998, por Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

Aqui entra a história de amor e ódio entre PSDB e PT. O PSDB é a esquerda, digamos, mais acadêmica, enquanto o PT representaria as facções operárias. Na Europa, geralmente, esses grupos são alas do mesmo partido de esquerda. Lembro-me de ter assistido a uma reportagem feita à época do impeachment de Collor em que o entrevistado, um membro do PSDB, definia a posição do partido sobre o processo de impedimento e começava sua fala da seguinte maneira: “Nós, socialistas,…”.

Em 1993, o regime e o sistema de governo foram objeto de um referendo previsto pelas disposições transitórias da Constituição de 1988, em que a população escolheria entre república e monarquia, e, sendo uma república, se parlamentarista ou presidencialista. O PSDB apoiou o parlamentarismo, e Fernando Henrique, já líder intelectual do partido, tinha um sonho dourado: ele próprio como primeiro-ministro e Lulão da massa como presidente. Com manutenção do presidencialismo confirmada nas urnas, o PSDB ainda tentou atrair o PT para uma coligação, mas o partido então era refratário à ideia. Foi a partir de 1994 que o PT impingiu aos tucanos a pecha de “direitista”, ainda aceita por muita gente, o que cria a rivalidade artificial entre as duas agremiações, o clima de Fla-Flu. A partir de 1998, o partido aceita coligar-se finalmente; o vice na chapa de Lula foi Leonel Brizola (PDT); além de PT e PDT, a coligação União do Povo-Muda Brasil incluiu PSB, PCdoB e PCB. Seria uma primeira adaptação do PT para “jogar o jogo”.

Nas eleições de 2002, a coligação Lula Presidente incluiu PT, PCdoB, PCB, o nanico PMN (Partido da Mobilização Nacional, de orientação esquerdista) e, estranhamente, o PL, que tinha a palavra “liberal” no nome e indicou o vice, José Alencar. Alencar, empresário, foi o nome escolhido para apaziguar o eleitorado, acenando uma flexibilidade do PT em relação às políticas socialistas: discurso flambado para a choldra e palavras ao molho madeira para o setor produtivo. A dobradinha deu tão certo, que a mesma chapa foi candidata em 2008. Alencar morreria em 2010, no exercício das funções.

A primeira vitória de Lula foi com 61% dos votos válidos. Apesar da vitória para o Executivo, a situação inicial no Legislativo mostrou-se problemática. A coligação obteve 130 cadeiras na Câmara (91 do PT, 26 do PL, doze do PCdoB, uma do PMN; o PCB não elegeu ninguém); no Senado, foram treze eleitos (dez petistas e um do PL), que se juntaram aos três petistas eleitos em 1998, ou seja, dezesseis senadores. Logo, a coligação de governo tinha 25% da Câmara e 20% do Senado, o que poderia configurar um país ingovernável, não obstante partidos filoesquerdistas pudessem eventualmente votar com o governo. O apoio precisava ser mais amplo.

É claro que, no Brasil, nada é o que parece ser e o jogo das acomodações pós-eleitorais começou simultaneamente à legislatura; foram feitas gestões para aproximar-se do PMDB, que, pela segunda vez desde 1985, estava fora do governo. Os 83 deputados da terceira maior força da Câmara seriam muito úteis, embora, sabe-se que o PMDB funciona mais como uma federação de interesses que como partido propriamente dito, o que explica o fato de medalhões do partido que se “conservaram na oposição”, como os senadores Pedro Simon e Jarbas Vasconcellos. A coalizão de governo na Câmara, em 2003, salta de 130 para algo por volta de duzentos; quase 40% da casa.

As acomodações, o troca-troca de partidos e a atração do PMDB de volta ao poder resultaram em 376 deputados no bloco do governo, ou praticamente três quartos da casa, o que deu ao governo Lula maioria absoluta; as artimanhas da velha política faziam-se presente naquela que se dizia nova. Em 2005, estourou o chamado escândalo do Mensalão, que expôs um esquema de compra de apoio de parlamentares de PPS, PTB, PR, PSB, PRP e PP, capitaneado pelo ministro-chefe da Casa Civil, o onipotente José Dirceu. A operação veio à tona quando denunciada pelo deputado Roberto Jefferson, então chefão do PTB e partícipe da sujeira toda.

A eleição de 2006 foi um teste para a popularidade de Lula, e sua votação praticamente não se alterou em relação à disputa anterior: venceu Alckmin com 60,8% dos votos válidos, ou seja, no primeiro turno.

Em 2008, mais um escândalo, o do Petrolão. Mesmo após o aparente desmonte do Mensalão, a estrutura foi reorganizada dentro de uma empresa de economia mista controlada pela União, a Petrobras, envolvendo executivos da petrolífera e também de outras empresas que sempre trabalharam próximas aos vários governos desde o regime militar, como as empreiteiras Odebrecht e Andrade Gutierrez. Os contratos com essas empreiteiras serviram para lavar o dinheiro de contratos superfaturados, desviado para compra de apoio parlamentar e para formação de caixa dois para campanhas.

Agora parece que o lulismo começa a perder força eleitoral. O ano de 2010 é de eleição presidencial; além do peso das denúncias do Petrolão, a escolhida de Lula, Dilma, não tem o carisma de seu criador, e a disputa vai para o segundo turno. Mesmo assim, Dilma obtém 46% dos votos válidos no primeiro turno e 56% no segundo, derrotando Serra.

Durante o primeiro governo Dilma, que tem início em janeiro de 2011 e foi profundamente influenciado por Lula dos bastidores, as investigações do Petrolão, agora batizadas de Operação Lava Jato, prosseguem, expondo muita gente e efetuando prisões de nomes da alta cúpula petista, como José Dirceu (em novembro de 2013) e Antônio Palocci (setembro de 2016, já no segundo governo Dilma).

Lula esteve ou adiante ou nos bastidores de tudo isso. Achar que ele está acima da lei é sintoma de demência. Além do mais, ele praticou o mais lavado populismo: ele deu o peixe em vez de ensinar a pescar, coisa que bate muito com o ânimo do brasileiro, que se vê como credor do Estado e deste tudo espera. As políticas lulopetistas não miravam o desenvolvimento, mas a criação de uma base eleitoral que garantisse ao partido poder, principalmente no início da tomada do Estado, base que, depois, poderia muito bem ser deixada de lado. O que o PT ingenuamente não previu foi uma oposição férrea de setores da sociedade, que foram aumentando com o passar dos anos; tampouco imaginou que o PMDB, tão afeito a verbas, pudesse abandoná-lo. Ledo engano. O PT não aprendeu com o passado: o PMDB é como as ratazanas de navio, que são as primeiras a fugir quando a embarcação começa a fazer água.

Por Lula ser o operador de todo o sistema — posição que, inicialmente, era de Dirceu — e, por bancar o santo, merece a cadeia. Merece a cadeia por nos ter enganado por quase trinta anos e, pego em flagrante, ter apelado a uma perseguição política que nunca existiu. De fato, isso de Lula achar-se Deus, durante um período, foi realidade efetiva na vida política brasileira. Lula era uma vaca sagrada, tinha moral para enfiar os dedos em todos os assuntos. Seus seguidores são sequelados por esse fantasma.

No fim das contas, preso, Lula será ainda motivo de alguma celeuma, mas, como tudo no Brasil, terminará por ser esquecido, cairá num ostracismo triste, ainda mais por alguém que se cria ungido. Lulistas e esquerdistas arrumarão outro bezerro de ouro para adorar, porque não são os cidadãos politicamente conscientes que alegam ser, mas os idólatras da política.

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Laçando bois

Estava eu em casa, pensando com meus botões. Fiz dois quadros com cédulas brasileiras repetidas da minha coleção; em um deles, doze cédulas dos anos 1950 e 1960; no outro, mais doze, que cobrem o período de 1981 a 2002. Neste último quadro, coloquei a famosa peça do gaúcho, de 5 mil cruzeiros reais, emitida em 1993. As duas últimas emissões desse padrão, os valores de 5 mil e 50 mil — além da de 10 mil, da rendeira, concebida mas nunca emitida — atraem-me por conta da estética diferente: além da representação de “protótipos” populares — o gaúcho e a baiana, algo que me lembra vagamente as emissões iugoslavas de 1950 a 1989 — havia nelas um prenúncio da primeira série do real, que é o verso “deitado”, ou seja a vertical da imagem alinhada com a horizontal da cédula.

No caso do meu quadro, deixei a cédula do gaúcho mostrando seu verso, que tem a representação de um gaúcho a cavalo prestes a laçar um boi. Penso o que aconteceria se uma cédula com essa imagem fosse lançada hoje, a repercussão negativa que traria, a grita generalizada. Na época, eu tinha onze anos; sempre prestei muita atenção às emissões de cédulas e moedas, pois coleciono desde os seis anos, e, mesmo que a cédula em questão tenha demorado em chegar à minha mão — na verdade, como ela foi lançada meses antes do Plano Real, vi realmente poucas — não me lembro de nenhum comentário que a desqualificasse pela arte do verso.

Isso me veio à mente após o exame fugaz do exemplar no quadro de casa e da questão da nova — já não tão nova assim — cédula inglesa de 5 libras ornamentada com o retrato de Winston Churchill. Vegetontos — gosto de chamá-los assim — estavam boicotando os fives porque na composição do polímero da cédula estava presente uma substância animal. Vejam, nem se tratava do quem a cédula trazia representado, o grande primeiro-ministro do período da Segunda Guerra Mundial, mas uma substância presente no suporte da cédula.

Imaginem agora se uma cédula brasileira com a temática do gaúcho, tal qual aquela de 5 mil cruzeiros reais, fosse lançada hoje, os chiliques a que estaríamos sujeitos nas redes sociais, as síncopes, os protestos, os abaixo-assinados motivados pela figura de um gaúcho laçando um boi.

Esse tipo de megassensibilidade ridícula empurrou países a fazerem cédulas inócuas e sem graça, como o nosso real, o euro e outras mundo afora. Se a ditadura dos ofendidos não existe, eu não saberia explicar o porquê de papel-moeda que parece dinheirinho do Banco Imobiliário ou do Jogo da Vida. Morto, sem graça, representativo de nada. O politicamente correto matou até a única possibilidade que o dinheiro tinha de ser algo minimamente vivo.

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Irreparabile fugit tempus

Quando “Xica da Silva” começou a ser transmitida pela finada Rede Manchete, canal 9 de São Paulo, eu estava terminando o oitavo ano do primeiro grau, o equivalente hoje ao novo do fundamental, ou seja estava terminando a etapa.
 
Eu me lembro muito bem que as pessoas consideravam a novela uma espécie de Cine Privé* continuado, ou seja, um pornô soft com historinha sem graça. O negócio mesmo era ver a Taís Araújo, na glória de seus dezessete aninhos, deixar ver um bico de peito ou uma forma mais arredondada das suas, hum, nalgas. Ou mesmo dos ombros nus.
 
Qual não foi minha surpresa estes dias, quando um desses sites que faz “jornalismo de listas” citou a novela como “a primeira com uma protagonista negra”.
 
Nem sei se de fato isso condiz com a realidade, mas vejam vocês como o tempo muda e (de)forma o nosso juízo. Eu não sou o fedelho pretensioso de quinze anos que era na ocasião, e “Xica da Silva” foi alçada de novelinha que velhões cansados acompanhavam com a esposa apenas para ver uma peitolinha e não incorrerem em sanção conjugal a “produção artística” lacradora.
O tempora, o mores!
* * *
* Cine Privé era nome do espaço de cinema adulto softcore que a Rede Bandeirantes, canal 13 de São Paulo, levava ao ar com produções B do gênero.

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Yo quisiera ser argentino

O Brasil nos afasta de sermos brasileiros porque nosso nacionalismo é feito de paisagens: praias, corcovados, cachoeiras. Não há nada mais sólido que nos una, temos apenas esse amor telúrico e irracional, não há tradições sólidas, não há uma cultura digna desse nome. Apenas rastros no meio da selva e prédios feios de concreto armado. Um nacionalismo de cartões-postais baratos.

Cuspimos no melhor que poderíamos ter como povo de origem colonial: as relações preferenciais com Portugal, sua história e sua língua. Assim que nos separamos, cuspimos no prato e agarramo-nos à França, essa prostituta de setecentos anos. Deixamos uma Lisboa pombalina para morar num lupanar parisiense. Herdamos toda a parte ruim da cultura francesa em cópulas infamantes. O Brasil está sempre agarrado à puta do momento, seja a França, o Reino Unido ou os Estados Unidos.

Não bastassem as doenças próprias, nossos impaludismos da alma, e as doenças venéreas estrangeiras, criamos uma síndrome preconceituosa contra os argentinos. Sim, guerreamos com eles, mas há coisa de quase duzentos anos, mas também lutamos juntos, como contra o Nero paraguaios, Solano López. A rixa nas armas deu lugar aos extremismos futebolísticos.

Maradona, Pelé; Pelé, Maradona. Quem é o melhor? Os argentinos ficam com Maradona, cada vez mais parecido com o objeto que costumava chutar; os brasileiros ficamos com Pelé, digníssimo no que fez, não no que fala, e por ser compatriota. Também temos mais títulos mundiais que eles: cinco, nós, e os argentinos, dois.

Mas nada além da presunção futebolística e naturalística sustenta nosso orgulho pátrio.

Basta ver quantos prêmios Nobel detém a Argentina: cinco. Dois da paz, dois de fisiologia ou medicina e um de química. Nós, apesar do tamanho e da verba que nossa academia consome, não temos galardão algum do gênero.

Fora a questão literária, que é a que mais me interessa. Embora não tenham Nobel nessa área, os argentinos têm um século XX recheado de autores excelsos, como o hors-concours Jorge Luis Borges, Ernesto Sabato, Adolfo Bioy Casares e ainda outros menores. Nós temos de nos contentar com esteticismo esquisito de Guimarães Rosa e algo como “Macunaíma” elevado a clássico por falta de algo melhor. Do século XX, só Lima Barreto nos salva.

O brasileiro nunca está contente com sua identidade nacional; ele passa por várias fases de querer ser outra coisa e, com o tempo, resigna-se ao pavilhão verde e amarelo. Não que as outras nacionalidades sejam melhores, afinal, nacionalidade implica em carregar um Estado nas costas, mas é que a nossa não tem quase nada a oferecer.

Não tenho mais pretensões. Uma nacionalidade é mais que documentos, geografia, política e economia; é principalmente cultura. E, esse ponto, posso dizer que tendo mais ao estuário do Prata que à baía de Guanabara ou ao sertões áridos.

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Parasitas do pensamento

A faceta mais malévola do politicamente correto é a autocensura, um cisticerco que se implanta na cabeça da gente, que a parasita e a impede de pensar com coerência.

Lembro-me bem de dois episódios ocorridos dentro da redação do jornal em que trabalhei. Aliás, é curioso como se comportam os jornalistas em cativeiro: gostam de jactanciar-se, de iludir-se num espírito coletivo difuso, na guilda que formam — e nesse sentido só perdem para os advogados —, mas borram-se quando alguma manifestação de descontentamento chega de fora e os atinge dentro do palácio de cristal.

Um dos episódios tem relação com o uso da expressão “lista negra” em u’a matéria. A diretora do órgão municipal das políticas para a população afro ligou para a redação. Não sei qual foi o teor exato do telefonema, mas nosso diretor apareceu suado e vermelho, pedindo prudência no uso desses termos. Não adiantou dizer-lhe que o uso da expressão era consagrado e nada tinha a ver com a cor de pele ou com a etnia de outrem, o diretor deixou escapar o que tentara dourar antes: era uma proibição. A lógica ou a etimologia não faziam parte dos motivos da decisão, que se baseou apenas no achismo de uma apaniguada da administração municipal.

O outro episódio me vem à mente por conta de um comentário sobre um traveco que canta — há controvérsias nesse ponto —, o tal Pablo Vitar. Discuti com uma jornalista que deveria ser o travesti, já que, originalmente, a pessoa que seria referenciada era homem. Aí foi um rosário de justificativas e imposições do politicamente correto, porque o travestido em questão “não se sentia homem”, o que não é questão para a gramática, mas para a psiquiatria. A gramática preocupa-se apenas com concordância nominal.

Esses dois fatos lembraram um terceiro: uso da palavra paraolímpico. O Comitê Paraolímpico Brasileiro cismou em usar um decalque do inglês em seu nome, “paralímpico”, construção tão espúria quanto ridícula. Sendo o neologismo falto de base lógica, continuei a usar “paraolímpico” e seus derivados; afinal, se a autoridade da Academia Brasileira de Letras no assunto já é duvidosa, que dirá a de uma organela paraestatal. Ela tem autoridade sobre desportos paraolímpicos; sobre palavras, que a deixe para quem pode.

Num plantão da redação, uma repórter veio com o jornal do dia dizendo que “havia um erro”. Mesmo em se tratando de um jornal pequeno e com revisor, cargo ocupado então por mim, era impossível que o jornal saísse sem erro algum, pois é uma quantidade considerável de texto para ser revisada em coisa de cinco horas. Fora a correria desnecessária que costuma haver nesse tipo de ambiente, o que prejudica ainda mais a qualidade do trabalho.

E lá veio a mulher com o jornal. “Olha, aqui está ‘paraolímpico’; está errado, pois o certo é ‘paralímpico’”. Tudo bem, mas está errado com base em quê? No dicionário (o Houaiss, no caso) só consta “paraolímpico”. “Foi o comitê que ‘decretou’”. Primeiro: comitê não decreta nada, pois não é executivo eleito por voto direto, a quem é dada a faculdade de emitir decretos; segundo: o assunto deles são esportes olímpicos para deficientes, não ortografia; terceiro: como já dito antes, a construção é bastarda e sem sentido.

Pois não teve jeito: a mulher fez ouvidos moucos saiu trombetando o ‘erro’ na redação toda.

A questão dos ‘erros’ é assunto para outro texto, e mostra o quanto as pessoas não gostam de estudar nada, menos ainda o vernáculo. Apegam-se a uma possibilidade e basta; o resto é erro.

Esses três casos mostram bem os estragos que o politicamente correto faz ao idioma e ao raciocínio das pessoas. O medo de ‘ofender’ quem quer que seja as transforma em zumbis, e assim a novilíngua politicamente correta vai ampliando seu vocabulário e seus horizontes.

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O passageiro

Quando me empurraram para dentro da cabina, jurei vingança.

— Você vai ficar lá três minutos. O que pode fazer para mudar o rumo dos acontecimentos?

Eu havia sido preso por ter uns jornais britânicos comigo, uns recortes, o que era crime na União Indiana. Transferiram-me para um campo de trabalhos forçados perto Bloemfontein, ou sei lá como esses gujaratis chamam a cidade, pois trocaram o nome de quase todas depois da invasão. Cheguei ao campo em 25 de maio de 2155 e lá fiquei por cinco anos, atém que me arrancaram do campo e me enfiaram nessa cabina.

Explicaram-me, entre insultos, que a tal cabina, que se tratava de um experimento de viagem no tempo. A porcaria seria lançada ao espaço e giraria a velocidades incríveis em órbita contrária à da terra. Eu demoraria cerca de meia hora para voltar quatrocentos anos.

Empurraram-me para dentro do cubículo e mandaram que eu me fodesse.

— Mandem esse imundo para o espaço.

Subi, como um foguete e depois que a cápsula entrou em órbita, fique meia hora prensado no fundo, por conta da velocidade. Finalmente a cápsula ficou mais lenta e começou a cair. Um paraquedas abriu-se, deu para sentir.

Ao abrir a portinhola, dei de cara com uma paisagem pastoril. Ao longe, um grupo de pastores ou agricultores brancos agitava as mãos. Chegaram perto, com algum receio. Falavam inglês e levavam um fardo consigo. Eu poderia estar na Inglaterra ou nas Colônias da América do Norte.

— Quem és tu? Vens por parte de Deus ou de Belzebu?

Pelo linguajar e pelas roupas, o experimento dos indianos havia dado certo. Eu poderia me afastar da cápsula e ficar ali, no século XVII ou XVIII, mas os gujaratis haviam atado a mim explosivos que detonariam em três horas. Se eu quisesse viver, teria de voltar para a cápsula, mas viver no meio daqueles filhos da puta era o mesmo que morrer.

— O que levam no fardo?

— Jeanette. Acabou de morrer de bexigas. Vieste tu buscá-la?

— Sim; vim em nome de Deus arrebatá-la.

Fazia mais de 150 anos que a varíola estava extinta. Se morro, levo esse presentinho aos indianos. Passaram-me o fardo, que depositei no fundo da cápsula.

— Amém, irmãos. Agora afastai-vos, que a carruagem volta para os céus.

A porta travou e os motores rugiram. Em cinco minutos, estávamos eu e o cadáver de Jeanette prensados no fundo da cápsula; o lençol que o cobria escorregou e vi o rosto jovem, mas macilento, recoberto de feridas, com os olhos entreabertos.

A cápsula começou a cair. Outro paraquedas abriu-se. Caímos onde deveríamos cair, pois não tardou quinze minutos para que abrissem a porta. Os mesmos indianos oleosos; estávamos perto de Bloemfontein.

— O que você trouxe aí, seu branquelo?

— Um presente.

Dois oficiais trouxeram o fardo que continham Jeanette e o abriram.

— Mas que merda é essa? Um cadáver?

Tomei uma coronhada e caí por terra.

Leve esse idiota de volta para o campo e o cadáver para geladeira da morgue. Talvez tenha algo que o valha.

Em quatro dias, cinco oficiais do campo apresentaram os sinais da varíola. Eu também tive, mas fugi do campo e me refugiei numa gruta. A doença não me matou, mas me deixou com um aspecto pavoroso. Fiquei vivendo nas matas.

O êxodo que a doença provocou foi imenso. Muitas pessoas saíram das cidades para o campo, muita gente morreu, principalmente entre os ocupantes indianos. O renascimento da varíola em um mundo em que a doença não existia mais permitiu que a África do Sul, limitada à província do Cabo Ocidental, recobrasse forças e expulsasse os indianos. Graças à varíola.

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Afroetnicomatemática e outras bizarrices

Faz uns meses que a Universidade Federal do ABC (UFABC), no ABC Paulista, planejou enfiar no currículo obrigatório uma disciplina nomeada Afroetnicomatemática. A ideia, segundo seu propositor, o Coletivo Negro Vozes, era rebater a “supervalorização do pensamento de matriz europeia em detrimento da produção intelectual de origem africana”.

Sempre fui grosso em exatas. Vivo basicamente com as operações básicas, regras de três e frações. De resto, sou uma negação; passava nas matérias que exigiam cálculo com o mínimo necessário, raspando mesmo. Mas sempre reconheci o papel crucial da matemática, que nos permitiu o desenvolvimento, por exemplo, da eletrônica e, em consequência, da informática. Devemos tais desenvolvimentos a matemáticos europeus, que receberam a álgebra dos árabes, que a desenvolveram bem por conta de seu sistema de numeração, herdado, por sua vez da Índia. Uma contribuição única desse sistema foi a introdução de uma representação para o nada, o zero, palavra de origem árabe. Sem o zero e Blaise Pascal, o sistema binário, base da informática, seria impossível.

Temos então a matemática como uma ciência muito cultivada por árabes e desenvolvida por europeus. O que propõe então a tal disciplina de afroetnicomatemática? “Inúmeros estudos de grande credibilidade […] atestam as contribuições milenares da África para a formação do conhecimento científico que se desenvolveu no resto do mundo, como[,] por exemplo[,] a construção das pirâmides do antigo Egito”, diz o documento do coletivo.

Um coletivo chamado Negro Vozes, imagina-se, tem como motivo a recuperação da herança africana no Brasil, basicamente de povos subsaarianos, mas a inclusão do Egito antigo nessa história traz dois fatores: um panafricanismo amalucado, de cepa gaddafi-nasseriana, que ignora a divisão clara entre o norte da África, árabe, e a região subsaariana, com interconexões, mas etnicamente muito diversa, além de um anacronismo patente. O antigo Egito pode ser considerado uma civilização africana? Apenas em conceituação geográfica arbitrária. A África não é, e nunca foi, um conjunto cultural coeso.

Na África subsaariana tínhamos basicamente povos ágrafos, ou seja, povos que tinham de transmitir seus conhecimentos oralmente, fato que limita e muito a transmissão eficaz e, o mais importante, a acumulação do conhecimento. O uso da escrita é tão importante que se considera como marco inicial da história, em oposição à pré-história; qualquer livro didático sério de história não me deixa mentir.

A tentativa de relativizar uma ciência exata, embora ridícula, abre precedentes perigosos. Fica parecendo que qualquer coisa pode ser subjetiva, como acontece com as ciências humanas e é fonte de seu atual estágio de destruição e descrédito. A tal afroetnicomatemática tem um conceito que é mais feio que seu nome — nome, aliás, todo composto com prefixos e radical de línguas indo-europeias —: a relativização cultural. Matemática não pode ser reduzida a manifestações culturais, ou estará excessivamente limitada e descontextualizada. Falar em geometria dando como exemplo as pirâmides é fácil e desonesto. Qual a contribuição dos povos bantos no desenvolvimento do sistema binário ou do teorema de Tales? Que tais povos tenham a repetição de padrões geométricos para fins estéticos não os põe na vanguarda da geometria. Usar padrões geométricos não quer dizer que se pensava neles com algum fim que fosse além da decoração.

E certamente não é com iniciativas desse cariz, panfletárias, que o Brasil vai conseguir um Nobel.

Por sorte, por conta da repercussão negativa, a UFABC recuou nessa loucura. Quem disse que a opinião pública não serve de nada?

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Arrazoando a ração

Ração vem de ratiorationis, latim que quer dizer parte, como efetivamente se mostra na palavra razão, com o sentido de parte. Antes de ser associada à comida animal, ração é sinônimo de alimento, é a comida diária do soldado, sua parte, sua ração. Ou mesmo como adjetivo, como o racionamento de comida que ocorreu em vários países europeus durante e após a Segunda Guerra.

O chilique provocado pela ração humana do prefeito de São Paulo, João Dória, foi ambidestro. O produto (ou subproduto) alimentício seria distribuído à população carente do município.

Tanto a esquerda como a direita fustigaram a ação. Os canhotos dizem que é desumano dar aquilo de comer às pessoas; os destros, que é desumano dar aquilo de comer às pessoas e que há dedo da elite globalista ali.

O curioso é que esse mesmo produto, a tal ração humana, até outro dia, era considerado um produto fitness, da moçada que puxa ferro e cuja meta de vida não é outra que a busca do abdome tanquinho, o Santo Graal do narcisismo moderno.

Logo, os transportes dos clubinhos não têm razão alguma a não ser a de criar celeuma. Não que Dória valha algo, pois, mesmo como alpinista político, está deixando a desejar. A ração é mamona na briga de rua em que se transformou o debate político. A inobservância semântica — ou mesmo o puro e simples analfabetismo funcional de conveniência — é fonte de falácias argumentativas.

Ora, raciocinemos e sejamos razoáveis.

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Soy un truhan, soy un señor – uma pseudocontradição constitucionalista

Peguei-me em uma possível contradição e sinto-me na obrigação de aclará-la. Ninguém gosta de ser pego em contradições. Mas, como diria o mestre Julio Iglesias, “Hey, no vayas presumiendo por ahí…”.

Se há um documento jurídico mais irritante que a Constituição Federal de 1988, eu não o conheço. Sempre defendi que a nossa carta magna é uma geringonça que funciona mal e, não obstante ter sido apodada “constituição cidadã”, ela está mais para constituição totalitária, pois quer regular tudo e mais um pouco; muito do que deveria ser legislação infraconstitucional está embutido lá, numa marchetaria de gosto e eficácia duvidosos. Precisamos de um texto constitucional mais conciso e coerente, não um arremedo de texto populista e inútil.

Porém, quando Dilma foi ser cassada e começou a grita por eleições, defendi a aplicação da Constituição, do seu art. 80, que previa a posse do vice, pois, nessa parte, ou seja, na regulação do funcionamento do poder político, ela é aceitável. Não se pode simplesmente mudar as regras do jogo com a partida em andamento. Tampouco defendo que o texto constitucional é imutável, mas que as mudanças, que podem e devem ser feitas, não podem simplesmente seguir ao sabor das conveniências momentâneas, como foi feito à época da Emenda da Reeleição (1997).

Além dessa aparente contradição, pego-me em uma mais recente, no caso da independência catalã. Como defendi a constitucionalidade do afastamento de Dilma, vejo, seja aqui como em Espanha, gente a dizer que a separação é ilegal porque contraria a Constituição espanhola de 1978.

A Constituição de 1978 tem uma grande desvantagem e uma grande vantagem. A primeira também impacta a nossa, só que de maneira diferente: as duas foram escritas em um período de transição, de término de um período totalitário — se bem que a nossa ditadura rotativa foi ficha comparada ao regime de Francisco Franco. No caso espanhol, o texto teve de incluir dispositivos e fórmulas para agradar aos dois lados, a turma do Movimento Nacional, que deixava o poder, e o PSOE, que se articulava para governar Espanha em breve. No nosso caso, a Constituição encheu-se de penduricalhos para evitar o “autoritarismo estatal”. Pois bem, hoje sabemos como esses mecanismos são usados para acobertar malfeitos. A Constituição Federal foi elaborada pela Assembleia Constituinte e entrou em vigor em 5 de outubro de 1988.

A vantagem da Constituição espanhola é ela ter sido referendada. Após a elaboração pelas Cortes constituintes, o texto foi referendado pela população em 6 de dezembro de 1978, o que deu vigência à carta a partir de 29 de dezembro. A Constituição Federal não deveria ter passado por processo similar?

Em todas as circunscrições eleitorais a carta espanhola foi aprovada, com índices que variaram entre 64,6% (Guipúscoa/País Basco) e 93,6% (Santa Cruz de Tenerife/Canárias). Tal processo torna a Constituição espanhola mais legítima que a nossa.

Então, por que desrespeitá-la, já que ela diz, em seu art. 2º que:

A Constituição fundamenta-se na unidade indissolúvel da Nação espanhola, pátria comum e indivisível de todos os espanhóis, e reconhece e garante o direito à autonomia das nacionalidades e regiões que a integram e a solidariedade entre todas elas. (tradução nossa)

Nosso texto traz no caput do art. 1º:

A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito […]

Não estamos mais falando do funcionamento político do Estado, como era o mecanismo de afastamento do presidente da República, mas de uma cláusula que impede o que se chama de autodeterminação dos povos.

Se considerarmos que uma Constituição é imutável, a Constituição Sul-Africana de 1961 incorporava e validava a legislação prévia que criou o conceito de “desenvolvimento separado”, o Apartheid, como o Separate Representation of Voters Act (1951), o Prohibition of Mixed Marriages Act (1949) e o Population Registration Act (1950), que davam arcabouço legal ao regime de segregação racial. Pois bem, algo extremamente injusto e desumano, mas que estava contemplado em leis e na constituição.

Logo, nos meus posicionamentos vários com relações às questões envolvendo o constitucionalismo brasileiro e o espanhol, não há, de fato, incoerência, mas, sim, a interpretação de mecanismos justos e injustos. Manter um povo dentro de uma “nação” da qual ele não se sente parte é injusto, mesmo que a Constituição diga que o país é “indissolúvel”. E a história mostra em várias ocasiões que não há nação indivisibiliter ac inseparabiliter eterna e que não foram apenas leis que serviram de respaldo às aspirações nacionais, mas revoltas, desobediência civil e guerras. O Estado romano, em seus quase mil anos de existência, foi, certamente, muito mais sólido que Espanha e, sem sobra de dúvida, que o Brasil. Mesmo essa estabilidade não impediu que ele ruísse de desse origem aos estados bárbaros, que são a gênese dos estados que estão hoje na Europa latina, ocupando o espaço territorial do Império. O que faz pensar que esses estados possam ser eternos e indivisíveis?

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Falkands europeias – O referendo catalão

As ilhas Falklands são o calcanhar de Aquiles nas relações anglo-argentinas. As ilhas, ocupadas pelos britânicos desde 1833, são reclamadas pelo país platino, que as chama de Malvinas, e foram mesmo o estopim de uma guerra suicida movida pelo governo militar argentino, em franca decadência, em 1982.

Na Europa, a Espanha tem uma situação similar com o Reino Unido por conta de Gibraltar, sob soberania britânica desde 1704. Mas não é sobre as Falklands nem mesmo sobre Gibraltar o assunto deste texto: é a Catalunha.

A Catalunha é parte da Espanha. Poucos brasileiros sabem que a Espanha não é um monobloco linguístico-cultural: além do castelhano, conhecido internacionalmente como espanhol, são reconhecidas oficialmente o basco, uma língua isolada não indo-europeia, o galego, língua-irmã do português, o catalão e o aranês, uma variedade de gascão — língua d’oc — falada no Vale de Aran, no norte da Catalunha. Fora o asturiano, que conta até mesmo com uma academia própria, o leonês e o aragonês, que não têm reconhecimento oficial, mas apenas uma “política de proteção”.

O calvário catalão começa com a Guerra de Sucessão Espanhola (1701-1714). A Espanha, até aquele momento, era tecnicamente uma união pessoal: existiam a Coroa de Castela e a coroa de Aragão, unidas pelo vínculo com o mesmo monarca. Aragão era então composta pelo que atualmente se identifica com a Catalunha, Aragão, parte da Comunidade Valenciana e as Ilhas Baleares. Durante sua longa história, chegou a governar o Reino de Nápoles, Atenas, a Provença, a Sicília e a Sardenha. Dentro da monarquia plurinacional espanhola, conservou sua autonomia, suas instituições e sua língua.

Carlos II (1661-1700), da casa de Habsburgo, morreu sem herdeiros, o que fez estalar a guerra entre os partidários dos Borbons franceses, que tinham como candidato natural Felipe, neto de Luís XIV, rei da França, e os dos Habsburgos austríacos, com o arquiduque Carlos. A guerra dava-se por temores de que a união dinástica com a França fortalecesse excessivamente este país; também a Áustria ver-se-ia fortalecida.

As Espanhas tiveram de tomar posição. A Coroa de Castela, com posição dominante dentro do reino e sob cuja responsabilidade estava a colonização de a administração do império, ficou com o candidato borbônico, já que era assim o desejo manifestado no testamento do finado Carlos II. Enquanto em Viena era proclamado rei da Espanha o arquiduque Carlos, como Carlos III, Felipe de Anjou assumia de facto o trono como Felipe V.

Ao fim de quase quinze anos de conflito, com a derrota dos austracistas, tem fim a monarquia composta dos Habsburgos e o início de uma política centralizadora dos Borbons. A Coroa de Aragão e suas instituições são extintas pelo Decreto de Nova Planta (1714), o que impnha também o uso do castelhano em um território em que cerca de 90% da população não o entendia. O acordo do fim da guerra trouxe perdas territoriais à Espanha; para o reconhecimento de Felipe V como monarca, o Reino Unido, que lutou do lado dos Habsburgos, ficou com Menorca e Gibraltar.

Desde então, a história da Catalunha é um longo processo de assimilação por Castela. Alguns momentos da história são importantes, como a formação da Mancomunidade da Catalunha, uma federação das quatro províncias catalãs (Lérida, Gerunda, Barcelona e Tarragona), que existiu entre 1914 e 1924. Em 1924, a ditadura do general Primo de Rivera (1923-30) extingue o organismo.

Com a proclamação da Segunda República Espanhola, em abril de 1931, após vitória ampla dos republicanos e a consequente abdicação de Afonso XIII (1886-1941), os sentimentos catalanistas voltam à tona, e se propõe um modelo “federal” de Espanha. É quando nasce o conceito de autonomia e de comunidade autônoma, que serão recuperados com a Constituição de 1978.

A República Espanhola vai trazer instabilidade ao País. Em 14 de abril de 1931, no rescaldo das eleições, Francesc Macià (1859-1933), líder republicano e independentista, proclama a República Catalã “dentro da Federação de Povos Ibéricos”, o que causou desconforto com o novo governo republicano, três dias depois, chega a Barcelona uma comissão de negociação. Macià renuncia a seu projeto, mas exige tratativas para o estabelecimento da autonomia catalã, o que resulta no restabelecimento interino da Generalitat da Catalunha, forma de autogoverno existente dentro da Coroa de Aragão, que se tornaria efetiva após 1932.

A Catalunha autonomia vai existir até 1939, quando a vitória dos nacionalistas espanhóis na Guerra Civil (1936-9), chefiados por Francisco Franco (1892-1975), extingue as instituições de autogoverno na Espanha e instaura uma ditadura que duraria até a morte de Franco. O último presidente da Generalitat antes da guerra, Lluís Companys (1882-1940), morreu fuzilado.

O período franquista foi marcado pela repressão a tudo que não fosse castelhano: língua, cultura e intenções políticas. O catalão perdeu a oficialidade, mas a cultura, mesmo sob os grilhões da ditadura floresceu. Continuavam-se a editar livros, e a música, a partir dos anos 1960, tem uma ampla penetração na sociedade, com nomes como Lluís Llach (1948) e Joan Manuel Serrat (1943).

O governo da Generalitat continua no exílio, com Josep Irla (1940-54) e Josep Tarradellas (1954-80). Quando é restabelecido o autogoverno catalão, em 1977, Tarradellas volta do exílio e assume provisoriamente o governo, até 1980.

A morte de Francisco Franco e a nomeação de Juan Carlos de Borbon como rei da Espanha marcam o retorno da Espanha à vida democrática. A nova constituição (1978) garante o direito ao autogoverno dentro de uma monarquia constitucional; não obstante o novo texto ter sido costurado para agradar tanto aos que eram apeados do poder como os que eram eleitos para os cargos, as tensões seguiam em alta, tendo seu ponto culminante em 23 de fevereiro de 1981, quando membros da Guarda Civil de orientação franquista tomam o hemiciclo das Cortes, em Madri, aos tiros, comandados pelo tenente-coronel Antonio Tejero (1932), durante a sessão de investidura de Leopoldo Calvo-Sotelo como primeiro-ministro, às 18h23. Apesar da tensão, o golpe só teve reconhecimento pelo comando militar de Valência e seu tenente, Jaime Milans del Bosch (1915-1977). Na madrugada do dia 24, à 1h14, o rei Juan Carlos I fez um breve pronunciamento na Televisão Espanhola (TVE), reiterando o papel da Coroa na manutenção da democracia, o que foi entendido como um rechaço ao que acontecera nas Cortes. Imediatamente após o pronunciamento real, começa a desmobilização do golpe, que se concretiza às 5h45, quando o tenente Del Bosch suspende o estado de exceção que vigorava em Valência. Embora Tejero só tenha abandonado o Congresso por volta do meio-dia do dia 24.

Teve papel importante o então presidente da Generalitat, Jordi Pujol, que pouco antes da 10 da noite do próprio 23 de fevereiro, fez um pronunciamento pela Rádio Nacional da Espanha (RNE) e pela Rádio Exterior da Espanha (REE) pedindo calma e tranquilidade aos espanhóis.

Depois desse incidente, a Generalitat adaptou-se bem ao clima democrático espanhol, mas a pressão de vários setores da sociedade catalã pela independência não foi mitigado, mas entrou no jogo. A Esquerda Republicana Catalã (ERC) sempre foi a força catalanista mais forte nesse período, a Convegência Democrática da Catalunha (CDC) e a União Democrática da Catalunha (UDC) formaram, em 1978 a Convergência e União (CiU), mais centrista e de cunho fracamente catalanista. A agremiação deu dois presidentes à Generalitat: Jordi Pujol (1980-2003) e Artur Mas (2010-6), mas dissolveu-se em 2015, dando origem ao Partido Democrata Europeu Catalão (PDeCAT). Nesse interregno dos convergentes, a Generalitat esteve nas mãos do Partido Socialista da Catalunha (PSC), braço do Partido Socialista Trabalhista Espanhol (PSOE).

Assunção ao poder de Carles Puigdemont (1962) ao poder, em janeiro de 2016, cimentou o caminho catalão à autodeterminação, que teve, até o momento, seu ponto mais alto com o referendo de 1º de outubro, que, não obstante ter sido ilegal do ponto de vista da lei espanhola, marca um momento único da vida civil catalã, além de mostrar qual é o estofo real da Espanha castelhana: centralismo, repressão e violência. Foi esse espírito que permitiu que os Borbons assumissem o trono e fizessem o decreto de Nova Planta; foi esse espírito que trouxe Primo de Rivera, a República e a Guerra Civil; foi esse espírito com que Franco plasmou seu regime, em que se podia apenas falar na “língua do império”. E foi esse espírito que deixou seu ranço azedo na Constituição de 1978.

Não tenho certeza se a Catalunha conseguirá de fato sua independência, mas uma coisa é certa: nada será como antes.

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