Os filoesquerdistas — os famosos “não sou petista, mas…” — têm feito afirmações como “Lula foi preso, logo acabou a corrupção no Brasil”. Esse tipo de raciocínio pervertido faria corar um camarão, que não tem cérebro e tampouco a capacidade de envergonhar-se.
É claro que a prisão de Lula não é o ponto final da corrupção no Brasil. Afirmar tal coisa é o ápice da boçalidade, pois corrupção entre nós é doença congênita. Execram-se os políticos, mas é preciso lembrar que eles não vêm de Marte, e sim do seio, ou da teta, do próprio povo. Os vícios da classe política são os mesmos encontrados na média da população, só que em escala ampliada.
Nossos vezos piores são o filoestatismo e o “gostismo”: os representantes são eleitos não por propostas plausíveis, mas pelo “gosto” pessoal do eleitor ou por soluções “legais” para problemas, as chamadas canetadas. Sabe-se bem que o brasileiro pede leis para tudo, mas não gosta de cumpri-las. Tudo é direito adquirido, exceto se o outro tem a audácia de fazer a mesma coisa; aí é crime.
Lula é o representante máximo desse pensamento. Seu partido fez oposição ferrenha a tudo que se lhe opunha, ou que não lhe era do agrado; aliás, partido que poderia chamar-se simplesmente “Partido do Lula”, pois, longe de ter uma ideologia, resume-se ao culto à personalidade do grande líder com lascas de socialismo. Nos tempos em que foi oposição, o PT fazia grita contra a corrupção no governo, o que lhe atribuiu uma aura santificada. Criou-se a ilusão — em que gente muito boa caiu — de que um governo petista seria o saneamento da vida pública brasileira, assim como houve gente bem-pensante que acreditou no fascismo, como Curzio Malaparte ou Ezra Pound.
O que aconteceu após 2003 foi justamente o contrário ao que o PT apregoava. Em 2005, estourou o escândalo do Mensalão, em que a prática de azeitamento monetário da base no Congresso ficou explícita. Prática que se sabe comum em Brasília, mas que não era esperada de um partido visto como probo e ínclito. O PT sucumbiu ao que de pior existe na política brasileira; ou simplesmente deu continuidade àquilo que fingia combater. Há rastros da corrupção petista bem antes da chegada ao Executivo nacional, como o caso Lubeca, em 1989, em que o partido fez caixa dois para as eleições de 1989 com o superfaturamento de contratos na Prefeitura de São Paulo. A então prefeita Luiza Erundina, que não era a opção de Lula para o comando da capital e ganhou a eleição meio que à revelia do chefe supremo, ficou estremecida com a cúpula do partido e acabou por abandoná-lo em 1997, após outros episódios em que a férrea disciplina partidária da agremiação a sancionou.
Toninho do PT, prefeito de Campinas, e Celso Daniel, prefeito de Santo André, não tiveram a mesma sorte de Erundina: foram mortos em 13 de setembro de 2001 e 18 de janeiro de 2002, respectivamente, porque impediram ou tentaram impedir que suas administrações fossem fonte de recursos de caixa dois para a campanha presidencial de 2001, justamente a que levaria Lula à Presidência da República. Tanto que, passados quase vinte anos dos assassinatos, os casos continuam sendo uma névoa na vida política; lembremo-nos que todas as testemunhas do caso Celso Daniel morreram, de morte morrida ou matada. Destino que também encontrou José Roberto Soares Vieira, ex-vice-prefeito de Ourolândia/BA investigado na Lava Jato e que denunciou a corrupção na Transpetro.
Lula é o PT; o PT é Lula. Isso é tão patente que o ex-presidente simplesmente ignora as vozes vindas do próprio partido. Em 2010, conseguiu fazer sua sucessora Dilma Rousseff, apparatchik oriunda das hostes brizolistas e que não tinha tradição dentro da agremiação, apenas para impor seu prestígio, deixando de lado nomes tradicionais. A mesma cartada deu certo na cidade de São Paulo, em 2012, com Fernando Haddad, homem da nomenklatura petista, mas foi barrada na reeleição, quando perdeu para João Dória Jr. (PSDB). Esse comportamento de Lula talvez tenha dado origem à candidatura de Alexandre Padilha ao governo de São Paulo em 2014; Padilha é outro burocrata, que terminou em um vergonhoso terceiro lugar, atrás de Paulo Skaf (MDB) e do vitorioso Geraldo Alckmin (PSDB).
Lula não é o líder de um partido democrático, mas de uma agremiação totalitária que geralmente repugna prévias e não tem vergonha de negá-las abertamente; os candidatos indicados soem ser indicados pelo capo Lula e simplesmente aclamados. É o prestígio de um líder ególatra que guia todo o partido.
A história de “presidente operário” não passa de um mito. Sabe-se bem que, depois do acidente que lhe decepou o mindinho da mão esquerda — aliás, episódio muito mal explicado —, nunca mais exerceu a profissão que o consagrou, metalúrgico. Ele passou a ser sindicalista full time. José Nêumanne Pinto, em seu livro “O que sei de Lula”, não me deixa mentir.
Após a fundação do PT, em 1980, Lula dedicou-se totalmente à carreira política, disputando o governo de São Paulo, em 1982, quando perdeu para Franco Montoro (MDB), amargando o quarto lugar. Em 1986, foi eleito deputado federal por São Paulo e angariou a maior votação do pleito, com 651.763 votos, o que seria, na época, a segunda maior quantidade de votos individuais para um candidato; o recorde até então era de Paulo Maluf (PDS), que teve 672.927 votos na eleição de 1982, marca que só seria quebrada em 2002, quando Enéas Carneiro (Prona) obteria 1.573.642 votos, título que segue inconteste.
Após essas experiências, Lula decretou que só se candidataria à Presidência, sendo derrotado em 1989, por Fernando Collor de Mello (PRN), e em 1994 e 1998, por Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Aqui entra a história de amor e ódio entre PSDB e PT. O PSDB é a esquerda, digamos, mais acadêmica, enquanto o PT representaria as facções operárias. Na Europa, geralmente, esses grupos são alas do mesmo partido de esquerda. Lembro-me de ter assistido a uma reportagem feita à época do impeachment de Collor em que o entrevistado, um membro do PSDB, definia a posição do partido sobre o processo de impedimento e começava sua fala da seguinte maneira: “Nós, socialistas,…”.
Em 1993, o regime e o sistema de governo foram objeto de um referendo previsto pelas disposições transitórias da Constituição de 1988, em que a população escolheria entre república e monarquia, e, sendo uma república, se parlamentarista ou presidencialista. O PSDB apoiou o parlamentarismo, e Fernando Henrique, já líder intelectual do partido, tinha um sonho dourado: ele próprio como primeiro-ministro e Lulão da massa como presidente. Com manutenção do presidencialismo confirmada nas urnas, o PSDB ainda tentou atrair o PT para uma coligação, mas o partido então era refratário à ideia. Foi a partir de 1994 que o PT impingiu aos tucanos a pecha de “direitista”, ainda aceita por muita gente, o que cria a rivalidade artificial entre as duas agremiações, o clima de Fla-Flu. A partir de 1998, o partido aceita coligar-se finalmente; o vice na chapa de Lula foi Leonel Brizola (PDT); além de PT e PDT, a coligação União do Povo-Muda Brasil incluiu PSB, PCdoB e PCB. Seria uma primeira adaptação do PT para “jogar o jogo”.
Nas eleições de 2002, a coligação Lula Presidente incluiu PT, PCdoB, PCB, o nanico PMN (Partido da Mobilização Nacional, de orientação esquerdista) e, estranhamente, o PL, que tinha a palavra “liberal” no nome e indicou o vice, José Alencar. Alencar, empresário, foi o nome escolhido para apaziguar o eleitorado, acenando uma flexibilidade do PT em relação às políticas socialistas: discurso flambado para a choldra e palavras ao molho madeira para o setor produtivo. A dobradinha deu tão certo, que a mesma chapa foi candidata em 2008. Alencar morreria em 2010, no exercício das funções.
A primeira vitória de Lula foi com 61% dos votos válidos. Apesar da vitória para o Executivo, a situação inicial no Legislativo mostrou-se problemática. A coligação obteve 130 cadeiras na Câmara (91 do PT, 26 do PL, doze do PCdoB, uma do PMN; o PCB não elegeu ninguém); no Senado, foram treze eleitos (dez petistas e um do PL), que se juntaram aos três petistas eleitos em 1998, ou seja, dezesseis senadores. Logo, a coligação de governo tinha 25% da Câmara e 20% do Senado, o que poderia configurar um país ingovernável, não obstante partidos filoesquerdistas pudessem eventualmente votar com o governo. O apoio precisava ser mais amplo.
É claro que, no Brasil, nada é o que parece ser e o jogo das acomodações pós-eleitorais começou simultaneamente à legislatura; foram feitas gestões para aproximar-se do PMDB, que, pela segunda vez desde 1985, estava fora do governo. Os 83 deputados da terceira maior força da Câmara seriam muito úteis, embora, sabe-se que o PMDB funciona mais como uma federação de interesses que como partido propriamente dito, o que explica o fato de medalhões do partido que se “conservaram na oposição”, como os senadores Pedro Simon e Jarbas Vasconcellos. A coalizão de governo na Câmara, em 2003, salta de 130 para algo por volta de duzentos; quase 40% da casa.
As acomodações, o troca-troca de partidos e a atração do PMDB de volta ao poder resultaram em 376 deputados no bloco do governo, ou praticamente três quartos da casa, o que deu ao governo Lula maioria absoluta; as artimanhas da velha política faziam-se presente naquela que se dizia nova. Em 2005, estourou o chamado escândalo do Mensalão, que expôs um esquema de compra de apoio de parlamentares de PPS, PTB, PR, PSB, PRP e PP, capitaneado pelo ministro-chefe da Casa Civil, o onipotente José Dirceu. A operação veio à tona quando denunciada pelo deputado Roberto Jefferson, então chefão do PTB e partícipe da sujeira toda.
A eleição de 2006 foi um teste para a popularidade de Lula, e sua votação praticamente não se alterou em relação à disputa anterior: venceu Alckmin com 60,8% dos votos válidos, ou seja, no primeiro turno.
Em 2008, mais um escândalo, o do Petrolão. Mesmo após o aparente desmonte do Mensalão, a estrutura foi reorganizada dentro de uma empresa de economia mista controlada pela União, a Petrobras, envolvendo executivos da petrolífera e também de outras empresas que sempre trabalharam próximas aos vários governos desde o regime militar, como as empreiteiras Odebrecht e Andrade Gutierrez. Os contratos com essas empreiteiras serviram para lavar o dinheiro de contratos superfaturados, desviado para compra de apoio parlamentar e para formação de caixa dois para campanhas.
Agora parece que o lulismo começa a perder força eleitoral. O ano de 2010 é de eleição presidencial; além do peso das denúncias do Petrolão, a escolhida de Lula, Dilma, não tem o carisma de seu criador, e a disputa vai para o segundo turno. Mesmo assim, Dilma obtém 46% dos votos válidos no primeiro turno e 56% no segundo, derrotando Serra.
Durante o primeiro governo Dilma, que tem início em janeiro de 2011 e foi profundamente influenciado por Lula dos bastidores, as investigações do Petrolão, agora batizadas de Operação Lava Jato, prosseguem, expondo muita gente e efetuando prisões de nomes da alta cúpula petista, como José Dirceu (em novembro de 2013) e Antônio Palocci (setembro de 2016, já no segundo governo Dilma).
Lula esteve ou adiante ou nos bastidores de tudo isso. Achar que ele está acima da lei é sintoma de demência. Além do mais, ele praticou o mais lavado populismo: ele deu o peixe em vez de ensinar a pescar, coisa que bate muito com o ânimo do brasileiro, que se vê como credor do Estado e deste tudo espera. As políticas lulopetistas não miravam o desenvolvimento, mas a criação de uma base eleitoral que garantisse ao partido poder, principalmente no início da tomada do Estado, base que, depois, poderia muito bem ser deixada de lado. O que o PT ingenuamente não previu foi uma oposição férrea de setores da sociedade, que foram aumentando com o passar dos anos; tampouco imaginou que o PMDB, tão afeito a verbas, pudesse abandoná-lo. Ledo engano. O PT não aprendeu com o passado: o PMDB é como as ratazanas de navio, que são as primeiras a fugir quando a embarcação começa a fazer água.
Por Lula ser o operador de todo o sistema — posição que, inicialmente, era de Dirceu — e, por bancar o santo, merece a cadeia. Merece a cadeia por nos ter enganado por quase trinta anos e, pego em flagrante, ter apelado a uma perseguição política que nunca existiu. De fato, isso de Lula achar-se Deus, durante um período, foi realidade efetiva na vida política brasileira. Lula era uma vaca sagrada, tinha moral para enfiar os dedos em todos os assuntos. Seus seguidores são sequelados por esse fantasma.
No fim das contas, preso, Lula será ainda motivo de alguma celeuma, mas, como tudo no Brasil, terminará por ser esquecido, cairá num ostracismo triste, ainda mais por alguém que se cria ungido. Lulistas e esquerdistas arrumarão outro bezerro de ouro para adorar, porque não são os cidadãos politicamente conscientes que alegam ser, mas os idólatras da política.